De tudo havia para sublinhar o soturno inconformismo com o resultado democrático das urnas
Por Maria Clara Bingmer*
As eleições terminaram e
o resultado foi reconhecido inclusive internacionalmente. Mas aqui na Pátria
amada esse reconhecimento se viu ameaçado desde o dia seguinte pelas
manifestações insólitas de grupos expressivos de pessoas que não aceitavam a
derrota e abraçavam caminhões, se reuniam sob chuva intensa diante dos quartéis, clamavam por seres extra
terrestres. Também rezavam. Desde terço até cantos carismáticos. De tudo havia para sublinhar o soturno
inconformismo com o resultado democrático das urnas.
Depois veio a festa da
posse do candidato eleito. E metade do
Brasil respirou. Não apenas pelo
acontecimento em si, mas pela beleza da diversidade do país sendo exposta sem
medo, acolhida, celebrada, cantada e dançada.
Foi bonito, digno e confortador para os que ali viam seu voto
representado e respeitado. Pensavam que,
enfim, iam acabar os dias tensos e sombrios, com ameaças pairando constantemente por todos os
lados e a frágil democracia ainda em perigo. Agora era realidade. Tínhamos novo governo e toda a riqueza da
nossa diversidade estava representada nos muitos ministérios que prometiam
erguer o Brasil do poço profundo onde fora mergulhado nos últimos anos.
Mas veio o dia 8 de
janeiro. Eu almoçava com uma amiga muito
querida e festejava seu aniversário. À
mesa havia vitoriosos e derrotados nas urnas.
Reinava, porém, respeito e harmonia.
Ao voltar para casa, recebi um telefonema da aniversariante: “Estão
quebrando Brasília. Liga a CBN.” Incrédula, liguei. E ouvi o que parecia
impossível. Começaram a chegar as notícias alarmantes e assustadoras. O Brasil depredando a si mesmo em uma
violência sem sentido nem propósito. As
instituições agredidas, os poderes enxovalhados, a pátria fraturada e dolorida.
Presidente presente e
enérgico, medidas tomadas, prisões etc. O evento em si foi aparentemente
superado. No entanto, a fratura foi grave, exposta e ainda não calcificou. Os acontecimentos do dia 8 de janeiro mostram
um Brasil dividido e que não conseguiu unificar-se em torno da democracia
legitimamente constituída. O clima, que devia ser de entusiasmo e alegria pelo
novo momento que o país começa a viver, mostra-se tímido como se temendo que
uma nova calamidade venha a se abater sobre a recém reconstruída democracia.
A pátria está dividida e
– o que é pior – aparentemente sem desejo de reconciliação e busca pela
unidade. Mais: sem esperança que tal unidade – que inclui e deseja a
diversidade – algum dia possa vir a acontecer.
Como agravante dessa fratura visibilizou-se diante de nossos olhos chocados a tragédia do povo yanomami. As imagens dos corpos profanados pela incúria e a ganância recordavam outras tragédias e genocídios da história da humanidade, como Auschwitz, Biafra etc. Pátria fraturada, pátria desnutrida, pátria profanada.
No entanto, ouvir os
povos originários serem defendidos pela voz de uma ministra que pertence a uma
de suas etnias acende uma esperança.
Igualmente sentir que se o cruel desmatamento cessar ou diminuir
consideravelmente a floresta poderá ser salva e seus povos poderão dela retomar
posse.
Não se pode deixar de
esperar. Apesar da fratura, apesar da
divisão, apesar das iniquidades. Curar a pátria fraturada, soldar seus ossos
quebrados, sanar suas feridas é responsabilidade de todos hoje. E isso pode dar-se pela intransigente defesa
da democracia, pela insistência em promover o diálogo, pelo acolhimento das
diferenças e a atenção a todas as vítimas.
Nunca talvez se fez tão
necessária a cultura do encontro a que tanto convida o Papa Francisco. Em seus dez anos de pontificado, o Brasil lhe
daria um bom presente se buscasse o óleo da tolerância e da abertura para ungir
fraturas e feridas, a fim de devolver ao povo sua identidade e seu rosto feito
de alegria e confiança em dias melhores.
Maria Clara Bingemer
é teóloga, professora e
decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio. É autora de
diversos livros, entre eles, ¿Un rostro para Dios?, de 2008, e A globalização e
os jesuítas, de 2007. Escreveu também vários artigos no campo da Teologia.
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